sábado, 23 de julho de 2011

O gato dentro de mim V


M. Dupont White*

Às vezes fico a me perguntar qual é a grande diferença entre cães e gatos. É claro que elas são visíveis e facilmente perceptíveis, mas será que há também uma significante diferença entre os amantes de gatos versus os de cães? No meu ponto de vista sim e essa diferença não é pequena. É uma diferença de personalidade e de ideologia. A diferença entre cães e gatos é, no fundo, reflete a dicotomia entre o coletivo e o privado, o coletivismo versus o individualismo. O bom é que não precisamos escolher entre as duas posturas e há espaço suficiente para que haja apreciadores de cães e gatos, ao mesmo tempo.
Mesmo entre aqueles que apreciam cães e gatos, em conjunto, que também é meu caso, há entre estes uma visível preferência por um dos dois tipos de animais. Os amantes de gatos tendem a ter pensamentos e ações independentes; os apreciadores de cães, ao contrário, gostam de seguir regras e gostam de estar entre o pensamento da maioria. Assim é comum se dizer que artistas gostam de gatos e militares gostam de cães. Mas isso não é uma regra, mas um exemplo.  Todos aqueles que exaltam o “espírito de equipe” ou celebram a “lealdade de grupo” são, via de regra, apreciadores de cães. Por outro lado, aqueles que possuem um modo de pensar que vai contra a corrente, um modo de agir individualista que dispensa a atuação do grupo, é um apreciador de gatos.
Quando li esta comparação pela primeira vez, logo me identifiquei. Sempre fui aquele que é avesso ao “espírito de equipe”. Esportes coletivos não eram comigo. Esse tipo de personalidade individualista e independente me aproxima dos felinos. Não gosto de cães babando e se atirando feito loucos quando chego em casa (muito embora meu cão faça isso diuturnamente), ao contrário, gosto da proximidade ideal do gato, o qual, à distância vêm te receber na porta de casa, ao pé da escada.
Os gatos, aliás, têm o dom misterioso de adivinhar quando estamos para chegar. É só abrir a porta e lá está ele à nossa espera. O cão, por sua vez, só se aproxima quando ouve o barulho da porta se abrindo. Será que os gatos têm um sentido a mais que desconhecemos? Não é o faro ou a audição, mas uma percepção única que o faz diferente. Os japoneses usam o símbolo do gato de porcelana com a pata esquerda levantada para atrair e recepcionar as pessoas (principalmente os consumidores) das casas e das lojas. Esse “gato de boas vindas” ficou conhecido como maneki neko. Anterior à própria história japonesa em que tais gatos eram colocados nas casas de chá para atraírem clientes, a origem do gato como o símbolo das “boas vindas” nasceu dessa habilidade ímpar e misteriosa de sempre se colocar à espera de seu dono quando este retorna a casa.

*M. Dupont White  vive em Paris com seus gatos. O texto foi traduzido por Marcelo Batuíra Losso Pedroso.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O gato dentro de mim IV


M. Dupont White*

Não é tão fácil se apegar a gatos. Eles são animais arredios que têm o hábito estranho de roçar nossas pernas, com uma intimidade que nunca lhe demos. Quando estão no cio então, produzem miados estranhos, em tons graves e profundos que chegam a assustar quem nunca ouviu. Quando são pequenos miam a todo instante, seja por fome, seja por carência, seja porque não se conformam de terem uma área limitada na casa.
A primeira vez que vi aquela gata branca fiquei um tanto chocado, pois ela não tinha rabo. Era um filhote de fêmea siamesa. Gatos, via de regra, têm rabo. E rabos lindos, peludos; utilizam-o como verdadeira forma de comunicação. É pelo movimento do rabo que percebemos o estado de espírito do gato. Mas aquela siamesa não tinha rabo. Era um presente em uma casa que já possuía o Rouge, devidamente adaptado e aclimatado. Ele, muito embora castrado, não a aceitou completamente de início. Houve um período que poderíamos chamar de “probatório”. A gata passou no teste e foi admitida na casa. Faltava-lhe, contudo um nome.
A parte de atribuir nomes a animais é a melhor parte. É aí que damos azo à criatividade. Soube que no Brasil, um desses deputados que não tinham mais o que fazer, resolveu criar um projeto de lei que proibia aos proprietários de animais domésticos de batizá-los com nomes próprios de pessoas. Ainda bem que o projeto de lei não foi sequer colocado em pauta de votação. É incrível como muitos países, cuja tradição da codificação napoleônica é predominante, ainda acreditam que a promulgação de uma lei possa ser o remédio para todos os males...
Essa gata era tão “selvagem” que conseguiu caçar um pardal em pleno vôo. Não preciso contar como foi a cena, poupá-los-ei dos detalhes mais sanguinolentos. Telhados e muros eram para ela meras passarelas. Mas quando a noite caía, lá estava ela a miar na porta de vidro da entrada, a pedir licença para dormir dentro de casa no conforto das almofadas do sofá. Era um tempo em que gatos não comiam ração como hoje, mas aquela comidinha carinhosamente preparada por nós: carne moída (sempre crua) com arroz. E ainda era o tempo em que se dava leite para gatos (não sei de onde veio esse mito de que o leite faria bem aos gatos).
Quanto me sentava na poltrona para ver o noticiário, lá estava ela a pular no meu colo e amassar a blusa como se fosse massa de pão. Quando se aquietava, ronronava. Esse é o grande enigma dos gatos: como fazem isso? Como produzem esse som estranho e contínuo, que nos indica calma e confiança?  É um mistério, como muitos outros na natureza.


*M. Dupont White  vive em Paris com seus gatos. O texto foi traduzido por Marcelo Batuíra Losso Pedroso.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O gato dentro de mim III

M. Dupont White*

Quando se tem um gato a primeira coisa para se saber é que você não é o dono dele e sim o contrário. Sua casa não é mais sua casa, mas a casa dele. Não adianta dizer que você é o macho dominante e aquela ladainha toda que só é aplicável à matilha de cães. Gatos não são cães. Graças a deus. Há quem os chamem de bolas de pêlo. Mas eles são, de fato, um pouco mais do que isso. Têm instintos e sabem se defender.
Quando era jovem e ainda não tinha um contato mais próximo com esses felinos, conheci o extinto de uma gata persa cinza (absolutamente domesticada até ter seus filhotes, quando se torna incrivelmente selvagem). Era na casa de um de meus amigos e ele me chamara justamente para ver os filhotes que acabaram de nascer. Não eram gatos, eram ratos. Feios e sem pêlos. Talvez o que eu vi de mais feio na vida. Zelosa por sua cria a gata não nos deixa aproximar-se da ninhada, a qual estava escondida atrás de um sofá.
Aquela gata boazinha e simpática que ronronava virou um animal dotado de instintos e diante da ameaça de qualquer aproximação não hesitava em sibilar (para leigos em gatos: é aquele barulho que o gato faz ao mostrar seus dentes em posição de defesa). O local para a guarda dos filhotes não se mostrava seguro o suficiente, foi o que aquela mãe-gata concluiu. De um em um, carregava pelo cangote cada um dos filhotes e levava-os para o andar de cima da casa, mas não se sabe para onde exatamente, pois a manobra era cuidadosamente feita enquanto não olhávamos. No final da tarde todos os filhotes haviam desaparecido.
Até hoje a garra e o instinto de preservação de sua cria me impressionam. Nós animais racionais não fazemos pelas nossas crias o que essa gata foi capaz de fazer pela dela. A cena, então observada de longe, da gata subindo as escadarias brancas da casa carregando um gatinho pela boca mordendo-lhe o cangote poderia parecer-nos cruel. Mas era como ela lidava com eles. Gatos não são ingênuos como cães, são ariscos, são precavidos e astuciosos, qualidades que raramente vemos nos profissionais de hoje em dia. Às vezes essas qualidades são erroneamente rotuladas de individualistas e egoístas, mas, na verdade, são elas que tornam possível que a vida continue e progrida.
Aqueles gatinhos ficaram sumidos por mais de uma semana, até que a dona da casa, já preocupada, encontrou-os dentro de seu armário de roupas, lá no fundo, onde ninguém pudesse ameaçá-los. Isto não é só instinto felino, é uma verdadeira estratégia de ação. Talvez seja por isso que o gato se apossa de nossa casa e nós é que nos tornamos, pouco a pouco, as visitas.


*M. Dupont White  vive em Paris com seus gatos. O texto foi traduzido por Marcelo Batuíra Losso Pedroso.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O gato dentro de mim II


M. Dupont White*

                        Gatos são animais espertos. Quando querem comida, carinho ou atenção, eles desfilam na nossa frente e chamam nossa atenção rolando as costas no tapete ou diretamente sobre o chão. Abrem as quatro patas e esperam que você se achegue com as mãos para lhe fazer carinho na barriga. Quando você é cativado por aquele gesto gracioso é pego numa armadilha: ele lhe morde. Sim gatos mordem. Ou melhor, beliscam com os dentes. Beliscam suavemente, deixe-se bem claro. É um sinal muito esclarecedor: ou não querem que você faça carinho ou, ao contrário, querem que você não pare tão cedo. Às vezes nem o dono entende essa linguagem tão refinada...
                        Essa fama de espertos lhe valeram o estigma negativo de interesseiros. Mas os gatos não são como cães, esses animais que só sabem babar, latir e pular em você mesmo que você os chute longe. Gatos têm memória. Cães não sofrem desse mal. Quando roçam com o pescoço em sua perna, saiba, querem algo. Pode até ser carinho, mas na maioria das vezes, é comida mesmo. Tive um gato, certa feita, que ele amassava pão. Bem, não exatamente pão, mas blusa. Todas as noites ele pulava no meu colo, colocava as patinhas dianteiras na minha barriga e as pressionava, uma de cada vez, como se estivesse preparando a massa do pão.
                        Gatos têm memória. Eles sabem que os alimenta, mas também sabem que os mal-tratam ou quem deles faz pouco caso. Os gatos, por isso mesmo, têm uma inteligência prodigiosa, onde o instinto felino é muito menos influente que seu livre arbítrio. Quando não querem nada com você, simplesmente se distanciam. Quando estão enfezados, fogem, se escondem.  Isso me faz lembrar um gato persa chamado Rouge. Não sei porque lhe deram esse nome até hoje, seu pêlo era cinza amarronzado e seus olhos em tom ocre eram extremamente charmosos. Ganhamos Rouge de umas senhoras que se mudaram de casa para um apartamento e acharam que o pobre bichano sentiria falta da terra e das plantas de um quintal. Ele foi meu primeiro gato.
Não era um gato qualquer, era charmoso. Mas aquela pelagem toda dava um trabalhão para pentear, até que um belo dia, entre um telhado e outro da vizinhança, ele pega uma daquelas coceiras terríveis que nada fazia parar. Não havia jeito, levei-o para a tosa. Ele ficou horrível. Foi-se o charme, foi-se a panca de gato de raça. Era um bicho magro, pelado, com um cabeção enorme. O fato é que, depois da tosa (necessária, por certo), ele ficou uma semana sem se aproximar de mim. Pois gatos têm memória. E também guardam rancor. Às vezes é preciso reconhecer que os gatos são mais humanos que os cães.

*M. Dupont White  vive em Paris com seus gatos. O texto foi traduzido por Marcelo Batuíra Losso Pedroso.

O gato dentro de mim I

M. Dupont White*


                           Na infância eu era um exímio atirador de flechas. Na casa de campo de meus pais podia exercitar meu hobby com tranqüilidade. Com o tempo, deixei os alvos fixos para me fixar nos alvos móveis. E os alvos móveis prediletos eram os gatos. Os encontrava aos montes, apareciam à noite, à sorrelfa, com miados ora lânguidos, ora metálicos, absolutamente irritantes. A agilidade natural daqueles felinos, associada com a fragilidade deles, fascinava-me a ponto de elegê-los como alvos móveis para minhas flechadas. Foi assim que, um dia, acabei por acertar um deles.
                       O felino era preto retinto. Na luz vaga da noite podia ver seu pêlo eriçado e sua olhar assustando tentando se mover, visivelmente ferido. Naquele momento, toda minha raiva por felinos se esvaiu-se. Tomou-me conta o desespero, ao ver aquele bichinho agonizando ali na minha frente. Removi os resquícios de madeira, incrustados em sua carne e carreguei-o comigo. Aquele gato, antes ágil, que por tantas noites enganara todas as armadilhas que eu armava no quintal para capturá-lo, estava ali, diante de mim, sucumbido pelo azar da minha pontaria. Era daqueles gatos que não têm procedência alguma, não se conhece pai nem mãe. Um gato de celeiro, como dizem na França, que ronda a casa à noite para vasculhar restos de alimentos.
                        Sabia que aquele ferimento não o deixava com grandes esperanças. Dei-lhe água, leite e comida. Fiz um curativo no local do ferimento e deixei-o abrigado do vento. Na manhã seguinte, quando acordei (quase não dormi), levantei-me cedo para ver o pobre animal alvejado, com um peso de consciência gigantesco. O animal havia ido embora. Sem sequer deixar bilhete de despedida. Aquela experiência me marcou por toda vida, mesmo agora, anos depois, com uma vida cheia de histórias de felinos, não paro de pensar naquele gato preto vira lata. Haveria ele sobrevivido? Nunca mais o vi por lá desde então. Mas também, pudera, quem seria bobo de voltar àquela casa e cruzar com uma criança mimada com um arco e uma flecha em mãos? Os humanos são, de fato, criaturas cruéis e imprevisíveis.
                        Essa fora a minha iniciação com gatos: essas criaturas enigmáticas, cativantes, cujas pupilas se dilatam, fixam-se nos seus olhos, com o nobre intuito de amolecer o coração mais duro. Os gatos, a seu modo, são criaturas mágicas. Desde o Egito eles nos rodeiam para que os domestiquemos. Ou seria o contrário? Naquela noite eu fui domesticado por aquele gato preto. E é ele que ilumina o caminho na noite, todas as noites. Você não consegue fugir dele. Porque ele está sempre ali. Você pode escutar aquele ronronar baixinho, como um motor ligado o tempo todo. Não se pode se esconder do gato preto porque ele se esconde com você. O gato está dentro de mim.


*M. Dupont White  vive em Paris com seus gatos. O texto foi traduzido por Marcelo Batuíra Losso Pedroso.